domingo, 9 de dezembro de 2012

O Escrinauta ~ Spoiler

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De olhos fechados, o Escritor Astronauta degustou o último gole do chá de hortelã feito por Carol. Ainda podia sentir o gosto morno descendo pela sua garganta, enquanto sua mente permanecia invadida por centenas de borboletas azuis voando mansas em um céu branco e silencioso. Já não escutava a voz de sua amiga, que ficou cada vez mais distante, como se ela estivesse se distanciando aos poucos, lentamente, até se tornar apenas uma lembrança ecoando em sua memória. Abriu os olhos e percebeu que não estava mais na casa de sua amiga Feiticeira Lunar. Estava em seu apartamento, sentado diante de seu computador, o cursor piscando em uma página em branco, esperando pela suas próximas palavras que dariam continuidade à história que estava desenvolvendo. Voltou um pouco a história e leu as partes mais recentes que havia escrito, e depois da leitura mental, olhou para as imagens translúcidas ao seu redor, que mostravam imagens dos personagens no momento em que a narrativa havia parado, além de trechos rascunhados de sua história, e com alguns toques de seus dedos fez todas elas próximas desaparecerem. Limpou sua mente de todas as ideias que tivera até o momento, e continuou a projetar um céu branco, dessa vez sem borboletas azuis voando suaves. Por medida de segurança, colocou seu capacete, travando-o firmemente em seu traje. Concentrou-se por alguns segundos, visualizando o momento derradeiro onde havia deixado seus personagens, e então começou a escrever sem parar, em uma velocidade intensa e atordoante.
"Hemilly, Henrique e Roney enxergaram na rua um vulto se aproximando calmamente em direção à frente da casa. Silenciosos e assustados, observavam enquanto aquela pessoa estranha e sinistra passava pelo portão, caminhava pelo jardim, parando próxima à entrada por alguns segundos, como se estivesse procurando se certificar de que estava exatamente onde deveria estar. A escuridão que tomava conta de tudo ao redor do quarteirão impedia que os três jovens escondidos conseguissem ter uma visão nítida do estranho, mas conseguiram distinguir, na sua silhueta camuflada na penumbra escura, que ele trazia os cabelos presos em um rabo de cavalo e segurava uma espécie de espada em uma das mãos. 'Roney, você consegue descobrir algo sobre ele?', sussurrou Henrique para o irmão, que olhava fixamente para o estranho lá fora. Hemilly virou o rosto para os dois irmãos, sem entender direito aquela pergunta. Roney permaneceu imóvel, quase prendendo a respiração, o olhar fixo lá fora, concentrado demais para responder a pergunta de Hemrique naquele momento. 'O que está acontencendo, Roney?', questionou Henrique num tom nervoso. 'Como assim descobrir algo? Não estou entendendo', indagou Hemilly, olhando insistentemente para Henrique. Nesse momento, Roney caiu ofegante de joelhos no chão da sala, as mãos sustentando o corpo que parecia enfraquecido por uma tarefa extenuante. Henrique agachou-se, segurando seus ombros e percebendo a testa do irmão umedecida por um suor discreto. 'O que houve? Tá tudo bem com você?', perguntou, procurando os olhos do irmão mais novo. 'Sim, eu estou bem. Acho que me esforcei demais agora, mas estou bem', respondeu Roney, fazendo uma breve pausa enquanto levantava-se com a ajuda de Henrique, para em seguida explicar que não conseguiu descobrir nada. 'É como se não existisse nada... eu só enxergava uma escuridão sufocante...'. 'Vocês estão me assustando! Do que seu irmão está falando? Que história é essa de não conseguir descobrir nada e de ver uma escuridão sufocante?'. Os irmãos se entreolharam em silêncio, e depois de um sinal de confirmação de Roney, Henrique virou-se para Hemilly e disse com um tom discreto de confissão, 'Meu irmão tem a capacidade de ler os pensamentos das pessoas'. A jovem garota fez uma expressão de espanto diante dos dois, quase rindo, quando eles escutaram uma voz soturna e desconhecida ecoar ali na sala, 'Então é aqui que vocês estão. Não foi difícil encontrar vocês dessa vez'. Repentinamente as luzes da casa voltaram a funcionar, e todos os ambientes se iluminaram a tempo deles presenciarem um estranho fenômeno acontecer. Uma das paredes da sala começou a se dissolver continuamente em uma névoa sombria, como se o concreto naquele ponto se tornasse instável, inconstante. Então surgiu inicialmente um rosto caucasiano com uma barba por fazer, usando um óculos escuros delineando uma expressão nada amigável".
O Escritor Astronauta parou atônito, olhando pasmo para o texto digitado de sua história. Flávio não perdeu tempo. Esperou pela continuidade da narrativa para então agir como bem queria dentro do enredo. O escritor precisava agir o mais rápido possível, ou aquele personagem rebelde e descontrolado destruiria a todos naquele momento, sem tempo para uma próxima página ser escrita.
"O rosto flutuou sutilmente enquanto uma névoa negra logo abaixo dele rodopiou rapidamente em espirais desgovernadas, fazendo surgir uma silhueta que se materializou em um corpo. 'Tudo ficou mais fácil depois que descobri toda a verdade sobre nossas existências. Só precisei aguardar paciente por aquele filho da puta continuar com toda essa história imbecil'. Flávio agia exatamente da mesma maneira que havia feito quando encontrou pela primeira vez o seu criador. Arrogante, perigoso, cego para reaver o poder que emanava do Livro da Morte que estava nas mãos de Henrique naquele momento. 'Hemilly, Henrique, Roney. Eu conheço vocês, e sei que um de vocês tem algo que me pertence', disse Flávio, aproximando-se lentamente dos três jovens, ainda aturdidos com aquela aparição sinistra e inesperada. 'Quem é você? De onde você surgiu? E como sabe quem somos?', perguntou Hemilly assustada. 'Eu sei quem ele é', disse Roney com um olhar fixo em Flávio, penetrando em sua mente sem medo e obtendo as informações sobre o estranho de palavras ameaçadoras, 'Ele se chama Flávio e é a pessoa que perdeu esse livro maldito. Ele está atrás da gente há alguns dias e quer o livro dele de qualquer maneira'. 'Exatamente, seu pirralho idiota. Nem essa sua aberração me assusta, pois eu sei a razão para isso. Eu sei porque você tem esse dom de ler as mentes dos outros. Você quer saber por que você é assim?'. Flávio se aproximou devagar, com passos mansos e atitudes suspeitas. Roney continuou olhando fixo para o rosto de Flávio, lendo seus pensamentos, e quando obteve mais informações, o garoto arregalou os olhos e disse assustado, 'Ele pretende matar a gente assim que pegar o livro!'. 'Você não precisava ler a minha mente para saber que eu faria isso. Além do mais, não se preocupem com suas vidas ridículas. Na verdade, eu, vocês e todo esse mundo só existe dentro da mente de um maldito filho da puta que pensa que agora tem o controle de nossos destinos', dizia Flávio, parando no meio da sala, enquanto olhava atentamente para a névoa negra que rodopiava ágil ao seu redor. Com seu olhar de uma loucura psicótica, direcionou a névoa para uma de suas mãos, e viu materializar-se rapidamente uma pistola Colt 45 prateada, com a qual apontou para Henrique sem perder tempo. 'E agora, você vai devolver a porra do meu livro, ou terei que sujar ele com o sangue de vocês três?'. Henrique encarou Hemilly e mexeu os lábios lentamente, dizendo silencioso a palavra 'pingente'. Ela entendeu a mensagem, levando a mão contra o peito, procurando o Destemporizador escondido por baixo de sua blusa. Ela o puxou pela corrente até que sua mão agarrou o pingente em forma de pequena ampulheta. Flávio desviou sutilmente o olhar de Henrique e apontou a arma para Hemilly. 'Desculpe, mas o tempo está contra você agora, e eu estou sem paciência'. Flávio disparou um tiro da sua Colt no mesmo instante em que Hemilly sacudiu o pingente, criando uma onda temporal ao redor deles e que se propagou por todo o ambiente, distorcendo a velocidade do tempo naquele espaço. Assim que a bala encontrou as ondas criadas pelo pingente, sua velocidade diminuiu astronômicamente, fazendo com que o projétil atravessasse o ar em slow motion, tão lentamente que podia se enxergar a trajetória do rastro deixado pela bala. 'Tire a gente daqui agora!', gritou Roney para Hemilly. Ela entendeu o recado e aproximou dos dois irmãos, envolvendo a todos na corrente do pingente. A onda continuava a se propagar pelo ar, e havia atingido Flávio, deixando seus movimentos pesados e cadenciados pelo retardo do tempo. Assim que Hemilly girou a ampulheta duas vezes seguidas, uma aura brilhante dourada circundou ela e os irmãos, eles ouviram um estrondo sonoro implosivo, e em seguida um pequeno buraco negro começou a se formar na mesma parede de onde havia surgido, momentos antes, a figura ameaçadora de Flávio, que agora movimentava-se com dificuldade. Confusa com aquela situação anormal, Hemilly não sabia o que realmente estava acontecendo, e nem por que surgiu aquele pequeno buraco negro na sala de sua casa. 'Não era pra isso acontecer!', gritou ela para os dois irmãos, 'Eu não entendo! Não estamos voltando no tempo!'. Enquanto eles permaneciam inertes dentro da aura brilhante, tudo ao redor começou a ser sugado pelo buraco negro, a começar pela própria onda de retardo temporal que ainda se propagava. Não demorou dois segundos para que todos os móveis fossem arrastados para dentro do buraco na parede. Flávio olhou desesperado para o que estava acontecendo, seu coração disparado enquanto ele gritava para todos os lados, 'O que você está tentando fazer, seu filho da puta idiota? Você pensa que vai me destruir assim tão facilmente? Eu sei de tudo o que vai acontecer na história tanto quanto você. Eu guardei todos os spoilers soltos sobre essa sua história imbecil!'"
O Escritor Astronauta parou de digitar, os dedos pousando a poucos milímetros do teclado, seu coração também acelerado pelo momento crucial que o envolvia agora naquela história com seus personagens e pelo perigo que aquela atitude ousada representava. Respirou fundo, e depois de ler as vociferações de Flávio nas últimas linhas, soltou um sorriso malicioso, mostrando contentamente pelo plano que havia criado estar funcionando perfeitamente. "Eu enganei você. Apaguei todas as minhas anotações sobre a história, e os spoilers que você capturou não eram meus realmente. Eram ideias de Carol que eu não usaria. O spoiler que você tem sobre esse momento da história é falso".
"Flávio, ainda conectado à mente do Escritor, escutou aquela revelação com uma expressão de pavor, que se transformou em desespero ao perceber que havia caído em uma armadilha do seu criador. 'Você não pode se livrar de mim, seu filho da puta! Você mesmo sabe que eu sou importante para o desenvolvimento dessa história maldita!', gritava, tentando agarrar-se em qualquer coisa para não ser sugado por aquele buraco negro. A voz onisciente do seu criador ecoou mansa em sua mente aturdida, largando novas revelações sobre o que estava acontecendo naquele ponto da narrativa, 'Mas eu não vou me livrar de você, Flávio. Você apenas será substituído por uma outra versão sua, vinda de um universo paralelo, uma versão que desconhece a minha existência. O que está atrás de você não é um buraco negro realmente. É um portal para um outro universo paralelo ao seu'. A névoa negra que envolvia o personagem rebelde da história sumiu rapidamente dentro do negrume espiral. Um a um, os móveis foram arrastados, e por fim, Flávio gritou diversos palavrões abafados pelo som assustador daquele portal aberto na parede, até ser também sugado pelo buraco negro e desaparecer completamente sem deixar rastros de sua existência. Então o portal drenou a si mesmo, sendo engolido pela sua própria força destruidora, sumindo logo em seguida, deixando apenas uma força pulsante e luminosa em seu lugar. Hemilly, Henrique e Roney permaneciam protegidos dentro da aura dourada criada pelo pingente, até que em questão de microssegundos, eles também desapareceram no ar, deixando apenas um rastro dourado flutuando no exato lugar onde eles estavam juntos momentos antes. Naquele momento, o estranho visitante soturno, que havia permanecido o tempo todo parado, exatamente imóvel do lado de fora da casa, se permitiu entrar no local. Atravessou a porta como se ela simplesmente não existisse e parou diante da sala agora vazia. Uma penumbra sinistra o envolvia, tornando impossível para qualquer pessoa dicernir sua fisionomia com exatidão naquele momento. Dissolvida sua imagem numa escuridão protetora, vagamente era perceptível seus olhos de pupilas vermelhas brilhantes e sua silhueta envolta numa indumentária preta com sua mão segurando uma katana. Ele observou a força luminosa pulsante deixada pelo portal criado e o rastro dourado flutuante da viagem temporal realizada por Hemilly, Henrique e Roney. Sua presença naquele local deixou aqueles dois rastros de força espaço-temporal instáveis, fazendo eles se aproximarem um do outro de maneira perigosa. O estranho visitante continuou observando a aproximação das forças com um olhar impassível, avaliando silenciosamente tudo o que ocorreu ali, até dar um passo para trás e desaparecer no ar através de sua névoa negra, girando silenciosa e rápida, um segundo antes da colisão dos rastros de forças gerar uma explosão de energia transdimensional".
O inesperado então ocorreu com o Escritor, que não imaginava que aquela explosão em sua história ultrapassaria as fronteiras literárias e o atingiria em cheio, arremessando-o pela janela de seu apartamento, fazendo-o cair do outro lado da rua, diante do olhar curioso de um pombo.

Escrito por Ulisses Góes
Pintura Fotorrealista: Jeremy Geddes

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