domingo, 5 de agosto de 2012

O Escrinauta ~ Rebeldia

2 comentários:
 
Foi um dia surpreendentemente atípico na vida do Escritor Astronauta. Trazia nas mãos os versos de seu amigo Sérgio e ainda persistia uma leve e quase imperceptível tontura doce, que estava provocando passos flutuantes e uma leve sensação de doce de banana em sua boca. Voltou para casa sorrindo e lembrando das palavras do Poeta Espacial, um verdadeiro presente inspirador que se impregnou em seus pensamentos como uma nova centelha criativa, crescendo aos poucos e tomando conta de todo o seu ser. Suas ideias fervilhavam de maneira diferente agora, pulsando caóticas entre borboletas e pequenos buracos negros. Continuava indiferente ao mundo que o cercava, as pessoas, os carros e congestionamentos, os idosos nas praças jogando damas, e o processo criativo permanecia dentro dele, mas não pegava fogo como antes. Agora suas ideias pulsavam, girando rápidas tais quais pequenas galáxias em espirais. As imagens da história que estava escrevendo surgiram em sua viseira em sequência, atravessando seu olhar em movimentos suaves. Sentiu um avanço, um salto criativo indescritível, enquanto subia as escadas do prédio. Quase não conseguia encaixar a chave na fechadura da escotilha pela ansiedade que estava sentindo. Os lampejos criativos se multiplicaram, enquanto ele tirava o capacete, e via as imagens translúcidas tomarem conta novamente de seu apartamento. Pegou algumas anotações em cima da mesa do computador e começou a ler, enquanto despejava café em uma xícara. Por um brevíssimo momento, ouviu um som distante de dezenas de cavalos galopando pelas avenidas enquanto sentia um tremor leve invadindo o ambiente, criando pequenas ondas no café. Permaneceu alguns microssegundos imóvel, observando aquelas minúsculas ondas surgirem em intervalos regulares, e assim que o tremor cessou, virou-se e começou a observar algumas das imagens suspensas diante de seus olhos. Fundiu algumas e deletou outras, organizou outras tantas rapidamente em uma sequência preliminar. Pegou a xícara de café e foi sentar-se diante de seu computador. Assim que se acomodou em sua cadeira, a imagem do último trecho escrito surgiu diante dele, como sempre um pouco acima do monitor. Ágeis como sempre, seus dedos recomeçaram a construir a história exatamente de onde havia parado.
"Henrique admitia em seu íntimo que tinha feito algo extremamente horrível, mas infelizmente já estava feito e não tinha como reverter as ações. Hemilly ainda encarava ele com espanto. 'Você matou uma pessoa apenas escrevendo o nome dela nesse livro?', questionou. 'Eu não tive outra opção. Se eu não tivesse feito o que fiz, com certeza nem estaria aqui agora'. Ele olhou para o irmão caçula e viu em seus olhos uma expressão questionadora, como se Roney perguntasse o que fariam agora. 'Onde você encontrou esse livro?', indagou Hemilly. 'Faz um semana eu achei ele quando voltava do colégio. Estava largado lá no asfalto, numa rua perto de casa. Só peguei porque na capa estava escrito Livro da Morte e isso me deixou curioso. Como estava chovendo, coloquei ele na minha mochila e continuei correndo pra casa'. Hemilly interrompeu meio indignada a explicação de Henrique, 'Peraí, você está me dizendo que pegou esse livro porque você curtiu o título que estava na capa, é isso que você está tentando me dizer?'. 'Mais ou menos. Agora como eu iria adivinhar que era um livro amaldiçoado? Ou satânico mesmo?', tentou se explicar Henrique. 'Eu ainda quero entender por que essas pessoas estão atrás de vocês, e por que eles querem tanto esse livro', ponderou Hemilly. 'Eu não faço ideia. A única certeza que tenho é de que eles estão tentando pegar a gente há uns 3 dias e só hoje conseguimos despistar eles e chegar até você', explicou Henrique. Hemilly esboçou uma expressão pensativa e repentinamente voltou-se para Henrique, parando diante dele a poucos passos, 'Espere um instante! se eles estão atrás do livro, por que você simplesmente não entrega para eles?', questionou ela."
O Escritor parou de escrever e olhou pela janela, pensativo com a indagação inesperada feita por Hemilly. "Realmente, por que ele simplesmente não entrega o maldito livro para os agentes?", pensou em voz alta. Era tão simples a ideia que chegou a pensar angustiado que tudo aquilo que eles passaram até chegar à casa de Hemilly era completamente desnecessário. Simples demais. Era só entregar o livro, pedir desculpas e provavelmente eles deixariam os dois irmãos em paz. Entretanto, percebeu que não era tão simples assim a situação, pois Henrique suspeitava de que o livro pertencia a outra pessoa, alguém que eles precisavam encontrar o mais rápido possível para entregar de volta aquele objeto perdido. Foi nesse exato momento que o Escritor ouviu uma voz estranha ecoar atrás de si soltando uma afirmação. "Mas é claro que eles precisam me devolver o livro. Ele é meu", dizia a voz. O escritor olhou para trás um pouco assustado, pois teve a impressão de que a voz viera de sua sala. Não havia ninguém ali, e apenas o que ele conseguia enxergar eram as imagens flutuando por todo o apartamento. Ainda cismado com aquela situação sinistra, voltou-se para o computador, e concentrou-se nos sons que poderia distinguir e reconhecer facilmente. Leu em voz alta o último trecho de sua história, enquanto partes de áudio com as vozes de seus personagens eram emparelhadas próximos ao seu ouvido numa espécie de teste de reconhecimento de voz. Podia ouvir em alto e bom som a conversa entre Hemilly, Henrique e Roney, certificando-se de que não havia nada estranho ou alheio invadindo suas ideias e confundindo o desenvolvimento de sua narrativa. Respirou fundo, quando inesperadamente a voz estranha ecoou novamente atrás do Escritor. "Você não pode continuar me ignorando. Eu quero meu Livro de volta", dizia a voz em tom ameaçador. Instantaneamente levantou-se da cadeira assustado, ficando em estado de alerta, olhando para o lugar de onde estava vindo aquela voz misteriosa. Observou as imagens translúcidas flutuando, e percebeu que uma delas parecia estar fora do ar momentaneamente, produzindo um chiado incômodo que ele não havia notado antes. A imagem buscou sintonia e sincronismo com os pensamentos do Escritor, até que finalmente foi estabelecido um primeiro e nítido contato. Um rosto caucasiano, com a barba por fazer e usando um óculos escuros escondendo parcialmente uma expressão pouco amigável revelou-se, denunciando ser ele o dono daquela voz intimidadora. "O Livro da Morte é meu. Tomarei ele de volta", dizia o dono do rosto impassível, enquanto o Escritor estreitava os olhos e balançava a cabeça como quem estava aos poucos elucidando um enigma antes obscuro. "Espere um instante. Eu sei quem é você", disse. O rosto flutuou sutilmente enquanto uma névoa negra logo abaixo dele rodopiou rapidamente em espirais desgovernadas, fazendo surgir uma silhueta que se materializou em um corpo. Parado, o Escritor viu diante de si um dos personagens de sua história tomar forma e desafiar a autoridade daquele que o criou. Vestindo uma jaqueta preta, uma calça jeans surrada e um tênis Nike, ele lentamente foi em direção ao seu criador, sempre com sua voz inabalável. "Eu quero meu Livro de volta", insistia. "Eu entendo que você queira seu Livro de volta, e você o terá, Flávio. Não precisa me intimidar desse jeito, eu sei quem você é. Você apareceu no início da história rapidamente, e ninguém ainda sabe que o Livro te pertence", explicou o Escritor. "Não importa quem eu seja, eu apenas quero a porra do meu Livro de volta! Se eu tiver que matar aqueles moleques, eu matarei sem qualquer remorso", ameaçou Flávio. "Espere um pouco! Não precisa agir dessa forma. Eu já disse que você terá seu livro de volta. Eu criei você, então nem pense em dar uma de rebelde pra cima de mim", retrucou o Escritor tomando uma postura defensiva. Repentinamente, o Escritor Astronauta sentiu dificuldade em respirar, como se algo ou alguém estivesse sugando o ar ao seu redor. Sentiu uma vertigem estranha dominar o ambiente, e não demorou em buscar seu capacete antes que desmaiasse por falta de oxigênio em seus pensamentos. Quando conseguiu encaixar o capacete em seu traje, viu aquela mesma névoa negra que havia trazido seu personagem agora rodopiar ágil ao redor dos dois, de maneira agressiva e intensa, deformando o tecido temporal ao seu redor, sumindo com a sala de estar de seu apartamento. Não demorou microssegundos para enxergar uma vastidão desértica diante de seu olhar atônito. Ali, no meio do nada, estavam apenas ele e Flávio, seu personagem arredio, revoltado, agindo por conta própria. "Você não diz mais o que eu devo fazer. Você vai descobrir agora o que acontece com o filho da puta que rouba aquilo que me pertence", disse Flávio de maneira marrenta, dobrando os joelhos, cerrando os punhos, pronto para participar de uma boa briga.

Escrito por Ulisses Góes
Fotografia: Hunter Freeman

2 comentários:

  1. Adorei seu blog, caro amigo Ulisses! É tão aconchegante!
    Muito bom estar por aqui, sempre que posso. Seus textos são magníficos.
    Estou adorando a leitura...

    Abraços.

    http://agatha-de-assis.blogspot.com.br/

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  2. Obrigado, minha querida amiga, é sempre bom receber sua visita por aqui em meu blog e saber que você está contaminada pelos meus textos.
    Abraços literários!

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