sábado, 25 de agosto de 2012

O Escrinauta ~ Dragões

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O Escritor Astronauta saiu daquele apartamento vazio com os pensamentos anestesiados. Desceu as escadas ainda sem entender o que havia acontecido minutos antes com ele naquele lugar. Pensava no guarda-roupa, no leão, na música que tocava sem parar, nas pessoas com as quais ele possivelmente havia conversado e nos livros com personagens de sua história na capa. Foram momentos tão reais que sua mente sentia uma dificuldade imensa em considerar que tudo aquilo foi um sonho maluco. Continuou descendo os degraus, percebendo agora o silêncio que reinava pelo prédio. Não havia mais qualquer música ecoando pelo ambiente. Chegou no corredor que levava ao seu apartamento, e viu as pedras lunares ainda pelo chão, exatamente no mesmo lugar em que estavam quando passou por ali alguns minutos atrás. "Parece que as pedras que Drummond anda deixando por aí definitivamente não fazem parte de meus estranhos devaneios", pensou o Escritor. Caminhou em direção à escotilha de seu apartamento, e quando estava tirando as chaves do bolso de seu traje, notou um pequeno bilhete grudado bem na entrada. "Estive aqui e não encontrei você. Fiz uma descoberta fantástica e preciso que você veja. Assim que puder, me encontre no estacionamento do Shopping ainda hoje. Seu amigo Dr. Brown", dizia a mensagem escrita em um papel tirado daqueles pequenos bloquinhos de lembretes. De início, o Escritor pensou em ignorar aquele recado, pois estava muito ocupado com o seu livro e tinha reservado aquela manhã justamente para pesquisar a respeito do momento exato em que sua história tomou um rumo diferente de tudo o que ele havia imaginado até então. Mas parou um instante, pensativo, ainda com as chaves na mão, e lembrou-se que, mesmo com aquele olhar meio espantado e aqueles levemente desarrumados cabelos brancos precoces para os 34 anos que tinha, Dr. Brown sempre foi um de seus amigos, assim como Sérgio e Caroline, que constantemente inspiravam grandes ideias que eram aproveitadas em seus livros. A mais recente intervenção sugerida por Dr. Brown foi a de trabalhar com a temática de viagens no tempo, sugestão essa que o Escritor achou interessante e incluiu posteriormente no seu trabalho atual, com a personagem Hemilly viajando no tempo utilizando o Destemporizador. Ainda assim, achava estranhas as conversas insistentes do amigo a respeito de deslocamentos temporais onde ele citava constantemente Einstein e sua famosa Teoria da Relatividade. O Escritor guardou as chaves e o bilhete em seu bolso e desceu as escadas, mas foi parado bem no meio dos degraus por um novo bilhete pregado na parede. "Não entre em pânico. Você vai voltar um pouco no tempo. Acredite", era o que estava escrito no papel. "Engraçado. Esse bilhete não parece ser do Dr. Brown. Quem escreveu este tem uma letra muito parecida com a minha", disse o Escritor para si mesmo, olhando desconfiado para aquela caligrafia semelhanta à sua. Em sua viseira apareceu imagens translúcidas de mensagens suas escritas à mão com caneta esferográfica preta, algumas em folhas de caderno, a maioria em folhas de ofício. Fez uma mapeamento comparativo das letras e constatou que aquele bilhete foi escrito por alguém com uma letra idêntica à sua. Guardou esse novo bilhete em seu bolso quando ouviu um barulho forte no andar de baixo, como se alguém tivesse caído das escadas. Continuou descendo, dessa vez com passos mais rápidos, pulando alguns degraus, chegando ao andar térreo com rapidez. Mas não viu ninguém caído, apenas encontrou a porta da frente do prédio aberta, e imaginou que aquilo tivesse sido ação desleixada de alguns dos moradores que não se preocupam com a segurança do local ondem residem. Saiu olhando para os dois lados da rua, como que procurando por alguém conhecido, algum vizinho, mas só visualizou pedestres estranhos. Olhou para o céu, e ficou aliviado ao perceber que não caia mais aquela chuva fina e que o tempo estava melhorando. O Shopping não ficava muito distante de sua casa, então não demoraria muito em chegar ao destino combinado pelo seu amigo Brown. Fez uma rápida estimativa e os números nas imagens em sua viseira mostravam que estaria no local de encontro em no máximo 20 minutos, indo pelo caminho mais curto possível.
Assim que chegou, checou a pequena imagem translúcida de um relógio digital que aparecia na viseira de seu capacete. Como realmente previu, chegou no tempo estipulado ao estacionamento do Shopping, e somente quando começou a procurar pelo Dr.Brown, o Escritor se deu conta da imensidão daquele lugar lotado de carros estacionados. Observando todas as vagas ocupadas, não fazia ideia de onde encontraria seu amigo. Andou sem rumo durante alguns minutos por entre os automóveis. Não seria muito difícil encontrá-lo, já que deduzia que um estacionamento sempre teria mais carros do que pessoas. "Ninguém vem a um shopping para ficar perambulando pelo estacionamento", pensou enquanto olhava para todos os lados, na esperança de avistar Dr. Brown. Mas ao passar próximo de uma Hilux preta parada ao lado de um Sandero vermelho, escutou um barulho sinistro às suas costas, sons finos e estridentes, porém não muito altos. Olhou para trás um pouco assustado, e considerou a possibilidade de algum motorista ter atropelado um animal pequeno, mas descartou logo a hipótese pois concluiu que isso seria improvável ocorrer ali, já que estava no meio de um centro urbano. Os estranhos guinchos ecoaram novamente, e dessa vez o Escritor viu pequenos sopros de fogo surgir atrás de um carro, criando bolas incandescentes que não demoravam a desaparecer no ar. Caminhou lentamente na direção de onde haviam surgido as pequenas labaredas, sentindo o coração acelerado, experimentando uma mistura de medo e curiosidade em seu íntimo, sem fazer ideia do que encontraria à sua frente. Aproximou-se silencioso e então viu, paralisado por um pavor contido, uma garota aparentando não mais que 14 anos saindo por entre os carros, seguida de perto por dois pequenos dragões voadores, descrevendo voos rasantes e discretos pelo asfalto do estacionamento. Ainda sem notar a presença do Escritor assustado com a cena, a jovem, com seus longos cabelos loiros presos atrás por diversas tranças lindamente entrelaçadas e vestida tal qual uma nômade de tribos de desertos distantes, esgueirava-se rápida juntamente com seus dois seres reptilianos alados cuspidores de fogo. Parecia perdida, como se estivesse desesperada procurando uma saída daquele lugar completamente estranho para ela. Ainda apavorado, o Escritor presenciou aquela situação como uma vaga sensação familiar percorrendo sua mente, como se já tivesse visto aquela garota e seus dragões em algum outro lugar, um notíciario ou um livro conhecido. Um dejá vù atravessou seu corpo, provocando um calafrio em sua espinha. Sem fazer barulho, seguiu a jovem de uma distância segura. Olhou por baixo de uma Pajero branca, e encontrou a menina agachada entre dois carros, com os pequenos dragões escondidos embaixo de um dos veículos. Nesse momento, o Escritor Astronauta sentiu uma mão tocando seu ombro com firmeza, e um novo susto o fez encolher-se todo contra o pneu da Pajero onde estava apoiado. Felizmente, era Dr. Brown vestido como um arqueólogo aventureiro, com seus olhos meio espantados e seus cabelos brancos sempre desarrumados, ainda que estivesse usando um chapéu estilo Indiana Jones. "Então você está aqui! E pelo que vejo, parece que já encontrou minha descoberta fantástica, hein?", disse Dr. Brown num sussurro entusiasmado. "Doutor! Você me assustou!", disse o Escritor, sentindo o coração mais acelerado ainda. Meteu a mão em seu bolso, pegou os bilhetes e os entregou ao amigo, "Eu recebi seus recados". "Recados? Ah, sim, eu deixei um bilhete para você quando fui em sua casa. Esse outro recado não é meu, eu não escrevo tão horrível assim", disse Dr. Brown, enquanto amassava os dois pedaços de papel e os jogava longe. "Mas Doutor, eu encontrei esses dois...", o Escritor tentou explicar sobre os bilhetes, mas foi interrompido pelo amigo, visivelmente animado, "Incrível, não é? Eu a encontrei faz um semana em um outro estacionamento. Tentei fazer contato, mas ela não entendeu minha aproximação, se assustou e desapareceu com seus dragões. A princípio, eu pensei que poderia ser maluquice minha, mas então hoje encontrei ela aqui no estacionamento desse Shopping, e só então decidi procurar você", explicou Brown, quase sem folêgo. "Mas eu não entendo. De onde ela veio? E aqueles bichos seguindo ela? São... dragões?", indagou o Escritor, confuso. "Eu acredito que ela tenha encontrado, acidentalmente, alguma fissura no tecido espaço-temporal e acabou passando através dele para o nosso mundo", o Dr. Brown ajeitou seu chapéu, ajoelhou-se e observou a garota e seus dragões por baixo do veículo, como se estivesse analisando seu comportamento e suas expressões corporais. Então prosseguiu com suas mirabolantes explicações, "Quando a vi pela primeira vez, ela demonstrava estar confusa e amedrontada, e falava uma língua estranha. Quando me aproximei, os pequenos dragões que a acompanhavam reagiram cuspindo fogo contra mim". "Como se estivessem protegendo a menina?", perguntou o Escritor. "Exatamente! Agora ela deve estar procurando novamente uma outra abertura espaço-temporal para voltar para o seu mundo". A cada nova explicação do amigo, o Escritor estampava uma expressão diferente de espanto em seu rosto. E quando se preparava para fazer uma nova pergunta, pequenos redemoinhos de ventos começaram a se formar próximos de onde estavam escondidos. O Escritor olhou para o Dr. Brown, que segurava o seu chapéu na cabeça para que não fosse levado pelo vento enquanto admirava toda aquela situação com um sorriso de satisfação em seu rosto. "Isso é fantástico! Acredito que estamos a ponto de presenciar o rompimento do tecido espaço-temporal aqui, neste estacionamento!", disse o Dr, eufórico. "Você está dizendo que algum tipo de portal vai se abrir no meio do estacionamento do shooping?", perguntou o Escritor. "Sim! Exatamente! Esses portais devem surgir ocasionalmente e permanecem abertos por questões de segundos". "Isso é loucura", disse o Escritor, vendo imagens translúcidas em sua viseira com informações sobre velocidade do vento e alterações nas frequências das ondas de som ocorrendo em uma pequena área do estacionamento. Então eles escutaram um zumbido estranho seguido de um rápido clarão e de um barulho implosivo. De onde estavam, presenciaram a abertura de um pequeno portal dimensional entre dois carros estacionados ali próximos, um Corsa Sedan preto e um CrossFox cinza. Não demorou muito e viram a garota de tranças passar correndo com seus pequenos dragões em direção à fissura aberta. "Vamos! Não podemos perder essa oportunidade!", disse Dr. Brown cheio de entusiasmo, partindo em seguida atrás da menina. "Espere! O que você pretende fazer?", indagou o Escritor, mas sem obter qualquer resposta do amigo, que no meio do caminho deixou cair uma caneta esferográfica e um pequeno bloco de anotações. "Doutor!... Espere!... Doutor!", gritava o Escritor em vão. Não podia deixar o amigo cometer qualquer tipo de loucura que colocasse sua vida em perigo, e saiu atrás dele, apanhando a caneta e o bloquinho de anotações largados na aslfato e guardando no bolso de seu traje. A garota nômade atravessou o portal com os dragões cuspidores de fogo, e em seguida foi a vez de Dr. Brown passar pela fissura. O Escritor sabia do perigo que envolvia aquela situação toda, mas não pensou duas vezes em acompanhar o amigo maluco. Passou pela fissura e encontrou-se no meio de um deserto imenso cheio de platôs sob um sol escaldante. A garota corria ao longe junto com seus dragões, e atrás dela a figura espontânea, exploratória e destemida do Dr. Brown, seguindo aqueles personagens de um outro universo. Gritou o nome do amigo, mas ele parecia completamente indiferente aos seus chamados. Quando estava prestes a continuar seguindo Dr. Brown, sentiu uma força estranha atrás de si segurando seu corpo e o impedindo de movimentar-se. Era aquela fissura criando uma poderosa força gravitacional ao redor dela e atraindo o Escritor de volta para a abertura. Rapidamente ele foi sugado de volta pelo portal, sendo jogado a alguns metros contra o chão do estacionamento. A abertura espaço-temporal começou a se consumir, como se estivesse engolindo a si mesma para enfim desaparecer como um ponto luminoso numa implosão silenciosa. Aturdido, o Escritor Astronauta permaneceu alguns segundos no chão, até se levantar assustado pelo som da buzina de um carro que quase o atropela naquele momento. Ficou parado alguns instantes no meio daquele imenso estacionamento do shopping, tentando entender o que havia se passado minutos antes. Olhou para todos os lados, na esperança de ver Dr. Brown por ali, mas sabia que seria uma busca em vão.
Retornou para casa, dessa vez sem se importar muito em fazer o caminho mais curto, optando por um novo trajeto, enquanto pensava no que poderia acontecer com Dr. Brown perdido por terras estranhas em um universo desconhecido. Quando estava próximo ao quarteirão onde ficava seu apartamento, o Escritor percebeu em sua viseira algo errado com seu relógio digital. Ele estava marcando um horário 25 minutos anterior ao horário em que havia saido naquela tarde para o encontro marcado no estacionamento do shopping. "Aquele portal deve ter alterado a configuração do horário", pensou. Lembrou-se que ali perto, em um cruzamento movimentado no centro da cidade, havia um relógio de rua em formato de Iphone. Sem demora, caminhou em direção onde as duas avenidas se encontravam sempre congestionadas e avistou o imenso Iphone registrando a temperatura e a hora local, e ao ver o horário que ele marcava, arregalou o olhar. O relógio de rua também estava 25 minutos atrasado, exatamente igual ao seu relógio digital. "Isso não é possível", disse boquiaberto. Na esquina oposta do cruzamento, avistou outro homem careca, de terno e gravata, segurando uma maleta e mexendo com uma das mãos algo que parecia um pequeno tablet dourado. Subitamente parou o que estava fazendo e olhou na direção em que se encontrava o Escritor. "Novamente esses Observadores estranhos", pensou, enquanto retomava o caminho de casa, confuso com aquele horário atrasado. Entrou no prédio onde morava com uma sensação maluca de deslocamento, que o estava deixando um pouco tonto. Estava subindo as escadas, reordenando seus pensamentos e disposto a esquecer tudo aquilo e retomar as pesquisas que havia planejado fazer naquela manhã com seu livro, quando chegou no corredor e um visão surreal fez paralisar completamente todos os seus movimentos. Viu a si mesmo parado ali bem diante da escotilha de seu apartamento, com as chaves na mão e lendo um bilhete. Recuou atônito para as escadas, o coração disparado, tentando assimilar tudo aquilo. Começou a sentir falta de ar, e uma tontura mais forte fazia seus pensamentos colidirem uns nos outros numa velocidade catastrófica. Estava a ponto de perder os sentidos a qualquer momento, mas precisava de qualquer maneira não deixar aquele pânico tomar conta de seu cérebro. Lembrou-se do recado que havia encontrado exatamente onde estava e, seguindo a orientação do que tinha lido naquele pedaço de papel, procurou rapidamente se controlar. "Eu voltei no tempo. Eu voltei no tempo. Não é possível, mas eu voltei no tempo, eu voltei no tempo, eu voltei no tempo", repetia sem parar o Escritor, que começou a se tocar, como se quisesse ter certeza de que ele existia realmente naquele momento. Ao tocar no bolso de seu traje, lembrou-se do bloquinho e da caneta que o Dr. deixou cair no estacionamento e que tinha pego de volta e guardado consigo. "Sim, o bloco de anotações. Preciso deixar um recado para mim mesmo. Sim, um aviso, preciso avisar a mim dessa viagem maluca no tempo, senão entrarei em colapso quando eu me encontrar comigo novamente em breve. Mas o que estou dizendo? Fez sentido o que eu disse agora?", sussurrava freneticamente o Escritor, enquanto tentava controlar sua respiração e escrever o bilhete com o recado "Não entre em pânico. Você vai voltar um pouco no tempo. Acredite". Assim que terminou de escrever, pregou o pequeno papel autocolante na parede e desceu nervoso o lance de escadas que faltava em direção ao primeiro andar. Enquanto descia as escadas entre o primeiro andar e o térreo, desequilibrou-se e caiu rolando pelos degraus. Levantou-se rápido, pois sabia que o barulho de sua queda acabaria chamando a atenção do seu outro "EU", que já deveria estar também descendo as escadas em pulos flutuantes. O Escritor, mesmo aturdido com a queda, correu para fora do prédio, deixando para trás a porta aberta, e se escondendo atrás de um carro estacionado ali próximo. Esperou ainda alguns momentos, aguardando seu outro "EU" terminar de fazer as tais estimativas de quanto tempo levaria para chegar o mais rápido possível ao estacionamento do shopping. Ainda escondido, conseguiu ver a si mesmo atravessando a rua rumo ao encontro marcado com o seu amigo Dr. Brown. Respirou fundo e sentou na calçada da rua. Seu fluxo de pensamentos voltava ao ritmo normal, assim como sua respiração e seus batimentos cardíacos, como mostrava as informações translúcidas na viseira de seu capacete. Tudo o que o Escritor queria agora era tomar um boa xícara de café e fumar um cigarro na calmaria silenciosa de seu apartamento.

Escrito por Ulisses Góes

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