quarta-feira, 26 de setembro de 2012

O Escrinauta ~ Revelação

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O Escritor estava confuso com a descoberta. Não tinha certeza se o que tinha em mãos era exatamente aquilo que deveria ter encontrado. Passou muito tempo caminhando nas areias daquela praia deserta, e após uma busca cansativa que parecia nunca terminar, tudo o que o detector de textos incontroláveis encontrou foi uma pequena caixa retangular de metal enfeitada com minúsculas engrenagens, um relógio que mal cabia na ponta do dedo e uma lâmpada diminuta, sempre acesa. Agora estava sentado no sofá da sala, segurando aquele pequeno objeto, tentando decifrar como aquilo poderia lhe ajudar a encontrar o trecho em que a história que estava escrevendo fugiu ao seu controle. "Isso parece uma sucata enferrujada", disse, contrariado, examinando de perto a pequena caixa de todos os ângulos possíveis. Pensou em retornar pela porta para iniciar uma nova busca, mas a mesma já havia desaparecido logo após ele retornar para a sala de seu apartamento. E assim como as outras, sequer viu o momento em que ela sumiu, uma situação que deixava o Escritor visivelmente irritado. "Malditas portas...", resmungou, enquanto movimentava, meio nervoso, a caixinha em suas mãos. Balançando ela levemente, percebeu que havia algo dentro. Mesmo considerando a possibilidade de sua busca ter sido um fracasso por encontrar algo que em nada se parecia com textos perdidos, o Escritor puxou algumas imagens translúcidas e iniciou uma ampla pesquisa em sites de busca, banco de dados e sistemas de informações com o objetivo de encontrar algo que pudesse revelar que objeto era aquele que estava agora em seu poder. Entretanto, todas as pesquisas foram em vão. Dominado pela curiosidade, abriu a pequena caixa com extremo cuidado e imediatamente a lâmpada diminuta apagou-se. Dentro havia um objeto estranho, uma haste de metal com um quase minúsculo relógio em uma das extremidades, junto com um filamento de cobre espirilizado que se prolongava contornando toda a extensão da haste. O Escritor olhou confuso, sem saber com certeza o que era aquilo. Olhou mais atentamente e chegou a uma conclusão que poderia ser a mais plausível para definir aquele objeto em sua mão. "Eu não estou muito certo do que encontrei, mas acredito que isto seja uma caneta", afirmou, segurando com atenção o bizarro instrumento. Silencioso enquanto pensava, o Escritor procurou entender sua descoberta e imaginou como ela traria de volta os textos descontrolados de sua história. "Se isso for realmente uma caneta, como eu suponho que seja, então provavelmente será através dela que encontrarei meus textos. Não deixa de ser uma possibilidade. Afinal, antes do surgimento de toda essa tecnologia, os escritores criavam suas narrativas e o poetas escreviam seus versos utilizando-se de pena e tinta, ou de uma simples caneta". Eufórico pela hipótese formulada, correu para sua mesa de trabalho, abrindo gavetas em busca de folhas de papel em branco onde pudesse utilizar a suposta caneta. Encontrou um maço de papéis em branco e jogou tudo na mesinha de centro da sala. Concentrou-se, segurando o pequeno instrumento de escrever, como que aguardando que aquele ritual trouxesse de volta as lembranças dos trechos perdidos, fazendo-o transcrever tudo novamente para as folhas. Mas os segundos se passaram, transformando-se em minutos suspensos, e nada aconteceu. Começou a ficar ansioso, quase nervoso. Nada podia ser mais desanimador do que uma tentativa frustrada de uma ideia que parecia fascinante. Largou a caneta e construiu segundos silenciosos, observando aquele objeto inerte em cima do papel enquanto arquitetava dezenas de pensamentos a respeito do que poderia estar errado naquela situação toda. Planejou levantar-se do sofá, reorganizar suas dúvidas para entender a sequência de ações ocorridas nos últimos minutos após a partida de seu amigo Andarilho Estelar, mas um movimento imperceptível chamou sua atenção. Podia ser apenas sua imaginação brincando com seus sentidos, mas não era. A suposta caneta promoveu um movimento sutil, tímido ainda, diante de seus olhos espantados, começando a se mexer sozinha, cada vez mais nervosa, até que se levantou e ficou em pé sobre a folha, flutuando milímetros acima de sua superfície branca, inerte. Não demorou muito, e a caneta, para assombro completo do Escritor Astronauta, começou freneticamente a escrever linhas e mais linhas de um texto que se configurou familiar para ele. Aproximou-se mais do papel e começou a ler atentamente todo o trecho que estava sendo escrito pela ponta ágil da caneta. Logo acima, uma tela translúcida posicionou-se e captou a liberação do texto antes perdido de seu livro, fazendo a transcrição em tempo real do que estava sendo reescrito.
"Enquanto dirigia pela estrada, Flávio relembrava que no início não conseguia controlar seus pensamentos confusos e dispersos. A princípio, aquela voz narrativa constante que ouvia em determinados momentos ecoando em seus ouvidos o deixara transtornado, a ponto de imaginar se tratar de algum tipo de esquizofrenia que poderia estar sofrendo, por conta do livro satânico que guardava há tanto tempo com ele. Não queria acreditar que realmente estivesse ficando maluco por possuir algo tão sombrio e maligno, e tentou descartar tal hipótese tão perturbadora. Entretanto, depois que perdeu o livro, a voz em sua cabeça tornou-se mais presente, mais constante, narrando cada atitude sua, e descortinando cada ideia que pensava em fazer. Era como se ela soubesse sempre de tudo o que faria, revelando tudo o que tinha programado fazer no tempo futuro. Evitando a iminente carga de loucura que insistia em querer se instalar em sua mente, há alguns dias Flávio decidiu concentrar-se na sequência narrativa daquela voz em sua mente. E em um desses momentos de concentração intensa, conseguiu criar um elo conectivo extremo com a voz, e descobriu que ela narrava não apenas suas ações, seus pensamentos, sua rotina diária, mas as ações de outras pessoas que ele sequer conhecia. Nomes começaram a surgir entre as narrações, descrição de situações acontecendo em outras partes da cidade. E foi assim que Flávio ficou sabendo da existência de Hemilly, Henrique e Roney, de como ele perdeu seu livro satânico e de quem o encontrou. Era como se realmente alguém estivesse escrevendo a história de sua vida enquanto ela acontecia diante de seus olhos. Passou a manter o foco na voz onisciente, e cada vez mais concentrado, ficava sabendo de mais fatos e informações importantes, até que um dia teve uma visão de alguém sentado diante de um monitor, digitando incessante em um teclado estranho. Conseguiu visualizar o rosto da pessoa e tudo o que ela escrevia. Abriu os olhos instantaneamente e sussurrou uma frase satisfeito, como se tivesse acabado de resolver uma equação complexa, 'Um escritor escrevendo a história de nossas vidas'.
Depois que encaixou as peças do quebra-cabeça e entendeu aquela visão como uma explicação bastante plausível para o que estava acontecendo, Flávio admitiu que aquilo não poderia ser uma loucura criada por uma mente esquizofrênica, principalmente porque havia encontrado o Livro da Morte muito antes daquela voz começar a soar em seus ouvidos, e agora não encarava nada daquilo como anormalidades ou distorções provocadas por algum tipo de distúrbio psicológico. Saiu da rodovia, invadiu uma estrada de terra, seguindo até perto de um penhasco. Estacionou seu Plymouth Sundance vermelho não muito longe da beira do precipício. Saiu do carro e ficou admirando dali do alto aquela imensa região desértica cheia de platôs. Estava ciente de que, desde que ultrapassou os limites da cidade e dirigiu até aquele ponto, o descoberto escritor estava narrando tudo o que ele estava fazendo e tudo o que estava pensando até aquele exato instante. A voz ecoava naquele momento em seus ouvidos. Agora precisava ser ágil o quanto antes e encontrar uma maneira de apagar ou esconder todo aquele trecho da história que o escritor desenvolvia. Só assim teria uma vantagem que favoreceria um ataque violento e inesperado contra aquele que ele considerava como o principal culpado por ter perdido o seu Livro da Morte. Olhou para o deserto se espalhando pelo horizonte e pensou que aquele local seria o mais apropriado para concluir seu plano. Traria o escritor até ali e o forçaria a mudar todo o rumo da história. Seria a conclusão perfeita para reaver seu Livro da Morte. Flávio controlou sua raiva fechando o punho com um gesto firme. Entrou no carro, faz uma manobra arrojada e seguiu para a rodovia, tomando o caminho de volta para a cidade. Precisava agir mais rápido do que a construção de pensamentos do escritor maldito".

A caneta subitamente parou de escrever, rodopiou para o alto e em seguida desceu flutuando lentamente sobre as folhas escritas de papel. O Escritor Astronauta estava completamente surpreso com aquele trecho redescoberto da sua história. Sabia que tinha escrito aquelas linhas, mas com o sequestro do texto pelo personagem, concluiu para si mesmo que a eliminação daquela parte deve ter provocado alguma espécie de amnésia literária, pois não se lembrava de ter escrito aquilo até o momento em que a caneta revelou tudo para ele novamente. Finalmente sabia o ponto exato onde havia perdido o controle de sua história e de seu personagem Flávio.

Escrito por Ulisses Góes

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