terça-feira, 15 de abril de 2014

O Escrinauta ~ Crônicas

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O garoto HOb fechou o livro com cuidado e continuou fitando o Escritor Astronauta com atenção. Não estava mais espantado, e agora deixava transparecer em seu rosto uma sutil expressão de contentamento denunciada por um leve sorriso quase imperceptível. Ele parecia compreender que o Escritor fôra transportado para dentro do universo de sua leitura, fato que o agradava muito. Já o Escritor, agora agachado diante daquele jovem de dons fantabulosos, estava maravilhado com a experiência que vivenciou momentos atrás, apesar das situações que se fizeram aterrorizantes diante de si. "Peço desculpas se assustei você. Eu penso que tinha me afastado o suficiente para que ninguém pudesse ouvir minha leitura. Eu adoro livros de terror, e as pessoas sempre se assustam quando eu leio eles", disse o garoto HOb, ainda olhando curioso para o Escritor, que não demorou em responder, "Não precisa se desculpar. A culpa foi minha. Eu estava terminando de escrever algo e eu não fazia ideia das consequências que as palavras de minhas história causariam". A explicação, por mais superficial que pudesse parecer, despertou no garoto uma curiosidade aguçada,e não demoraria mais do que meia respiração sua para começarem a surgir perguntas intrigantes buscando respostas esclarecedoras imediatas. E foi o que aconteceu. "Você é escritor?", questionou o jovem HOb fascinado. O Escritor respondeu afirmativamente, explicando logo em seguida a respeito do livro que estava escrevendo para o jovem ouvinte extremamente atento. E a conversa abriu espaço para uma sequência de perguntas a respeito de sua obra que nem o próprio Escritor Astronauta esperava. O garoto elaborava perguntas que iam desde simples indagações sobre os nomes dos personagens até intrigantes questionamentos sobre quais influências literárias o levaram a escrever uma história no estilo narrativo que havia escolhido. Enquanto respondia as perguntas, o Escritor começou a sentir um formigamento criativo nas ideias em sua mente, sugestões de desdobramentos da história foram surgindo numa velocidade impressionante à sua frente. Sacudiu a cabeça rapidamente e olhou para o jovem HOb, que o fitava com aquele contínuo olhar de curiosidade, aguardando suas respostas. Impressionado com aquela sensação produzindo coceiras em seu cérebro, o Escritor Astronauta respondeu a mais uma pergunta do garoto atento e então o olhou fixamente na direção de seus olhos que pareciam conter em si constelações brilhantes de infinitas histórias já lidas. "É você que está causando essa sensação inquietante em mim?", perguntou o Escritor, "Eu nunca senti algo assim antes. Essa vontade intensa de continuar escrevendo e terminar minha história o quanto antes para que você possa ler". "Eu não sei. Acho que sim... Eu nunca encontrei um escritor antes", disse o garoto. O Escritor parou um momento, os pensamentos se organizando em sua mente, procurando caminhos explicativos. "Você fez tantas perguntas, mostrou tanto interesse na história que estou escrevendo. É como se eu fosse secretamente incentivado a continuar escrevendo, pois meu livro pronto seria a resposta mais definitiva para todas as suas perguntas". O jovem HOb sorriu, e esse sorriso era o sinal de que ele concordava com a explicação oferecida pela Escritor. "Posso ler um trecho de sua história?", perguntou o garoto enquanto guardava em sua mochila o livro que estava lendo momentos antes, cuja capa estampava um grupo de zumbis perseguindo jovens sobreviventes. "Sim, claro, posso mostrar alguns capítulos para você".
Nesse exato momento da conversa, o Escritor Astronauta sentiu sua cabeça pesar levemente numa tontura estranha, incômoda durante os segundos em que persistiu quase como um desmaio. "Você está sentindo alguma coisa?", perguntou o garoto, demonstrando certa preocupação no comportamento do Escritor, que tentou responder, mas foi impedido pela tontura seguida por uma falta de ar sufocando suas palavras. Caiu de joelhos amparado pelo jovem HOb, enquanto um pequeno aviso de ALERTA começou a piscar insistente em vermelho na viseira de seu capacete, seguido por diversas informações translúcidas deslizando velozes determinando alterações em seus batimentos cardíacos, queda constante da temperatura de seu corpo, além de outros súbitos distúrbios nos sinais vitais de seu corpo. "O que está acontecendo?", perguntou o garoto, aflito, observando o Capacete do Escritor congelando por dentro, criando pequenas crostas de cristais de gelo e fazendo o ar dentro do traje condensar-se aos poucos, quase impedindo de ver o rosto do Escritor em meio àquela névoa congelante. "O capacete! Tire o capacete!", gritava o jovem HOb ao mesmo tempo em que tentava desesperadamente livrar o amigo daquela situação. "Sim, preciso tirar o capacete...", pensou o Escritor, e com movimento súbitos destravou o capacete de seu traje, provocando uma rápida sensação de alívio por conseguir respirar novamente. "Está tudo bem com você?", perguntou o jovem HOb antes de sentir brisas congelantes saindo de dentro do traje do Escritor. "Não sei", respondeu o Escritor ainda ofegante e tonto, "Ainda estou tonto". Olhou para o garoto e percebeu que sua visão estava levemente turva, como se houvesse uma névoa atrapalhando ele de enxergar com mais nitidez. Esfregou as mãos nos olhos, e quando olhou ao redor, constatou surpreso algo mais estranho. "Não entendo. Tudo ao nosso redor está desbotando". "Desbotando? Você quer dizer perdendo as cores?", indagou o jovem HOb intrigado. "Exatamente! Onde nós estamos as cores ainda estão vívidas", o Escritor, ainda ajoelhado diante do garoto, olhou para a grama logo abaixo deles e apontou, "Está vendo? Aqui o verde está mais verde. Mas ali do outro lado a grama está ficando pálida, quase cinza". O jovem HOb ficou cismado com a situação descrita, como se já soubesse o que de fato estava acontecendo com o Escritor. "Por acaso sua visão está ficando embaçada quando você tenta olhar para algo mais distante?", perguntou o garoto. "Sim", respondeu o Escritor, "assim como a visão de uma pessoa míope". Ao ouvir isso, o jovem HOb levantou-se demonstrando alguma aflição, andando de um lado para o outro da maneira nervosa, esfregando as mãos enquanto murmurava perguntas. "Será que está acontecendo de novo? Mas como pode acontecer sem eu perceber? Como isso é possível? Talvez seja coincidência, e eu esteja nervoso à toa. Ou eu não estou mais conseguindo sentir?". Um estranho pressentimento fez o garoto meter a mão em sua mochila para procurar o livro sobre zumbis que estava lendo. Pegou o livro e assim que olhou fixamente a capa, abriu e começou a folhear as páginas. Seus temores se confirmaram quando ele passou várias folhas e percebeu que as palavras estavam começando a desaparecer lentamente, como se a tinta impressa sumisse pela ação do tempo. "Veja, atrás de você", disse o Escritor, ainda tonto e sem ar, apontando para a grama logo atrás do garoto. "Está desbotando cada vez mais perto. O que está acontecendo?". "Eu sei o que está acontecendo!", respondeu aflito o jovem HOb, guardando imediatamente seu livro na mochila e revirando-a em busca de outra coisa que sempre trazia consigo. Nesse momento sua visão começou a embaçar. Aquela sensação desagradável de "pupilas dilatadas pelo colírio do Oftalmologista" o deixou mais aflito ainda, pois era uma sensação que não lhe trazia boas lembranças. Então conseguiu encontrar seu pequeno livreto azul de anotações e abriu em uma página contendo um pequeno texto com o singelo título "Biblioteca" escrito com sua caligrafia. "Não se preocupe, eu vou tirar a gente daqui agora", disse o garoto para o Escritor, ajoelhando-se ao seu lado e agarrando seu braço com força, enquanto aproximava e afastava o livreto de seu campo de visão, tentando encontrar o melhor foco para ler seu texto. "O que você vai fazer?", questionou o Escritor, quase perdendo os sentidos. "Vou transportar a gente para outro lugar longe daqui", respondeu o garoto antes de encontrar a distância exata para ler seu texto. E poucos segundos antes que tudo ao redor deles desbotasse completamente a ponto de se transformar numa cinzenta paisagem borrada perdida em meio àquela névoa assustadora, o garoto conseguiu ler seu texto, criando um ponto luminoso condensado que sugou os dois instantaneamente numa fissura espacial. Enquanto o seu jovem amigo HOb lia as páginas de seu pequeno livro de capa azul, o Escritor Astronauta viu centenas de estantes surgirem ao redor de si em uma velocidade impressionante e serem imediatamente preenchidas com milhares e milhares e milhares de livros. A tontura diminuiu, sua respiração voltava ao normal gradativamente, assim como sua visão ficava cada vez mais nítida, até o momento em que percebeu que ambos estavam ajoelhados no meio de uma imensa biblioteca municipal.
"Onde estamos?", perguntou o Escritor. "Meu refúgio. Venho sempre para cá quando sinto algum perigo me cercando", explicou o garoto. O Escritor Astronauta deu uma boa olhada ao redor e estranhou o tamanho descomunal do lugar, tão alto que mal dava para definir quantos andares deveria realmente ter, e com corredores de estantes tão compridas que também não se podia definir sua extensão exata para qualquer lado que olhasse. Para todos os lados haviam prateleiras de livros, e em todos os cantos haviam montanhas empilhadas de livros, pelas escadas, perto de algumas estantes, em diversos corredores. "Esse lugar existe de verdade?", indagou o Escritor. "Existe sempre que preciso dele", respondeu o jovem HOb. "E como viemos parar aqui?", mesmo tendo um leve suspeita de como tudo aconteceu, o Escritor queria ouvir a explicação do garoto, que mostrou para ele o livreto azul ainda em suas mãos. "Eu escrevo sobre lugares que eu gostaria que existissem ou lugares que existem e onde eu gostaria de estar. E uma vez eu descobri que quando eu lia os textos escritos por mim, eu acabava sendo transportado para esses lugares descritos em meus textos". O garoto sorriu com a própria explicação, ciente dos dons literários que hava descoberto quando criança. "Mas por que ainda permanecemos aqui, mesmo depois que você parou a leitura?", questionou o Escritor, tentando entender um pouco mais a natureza do seu jovem amigo HOb. "Não demorei muito em descobrir porque eu permanecia nos lugares relatados nos textos que eu lia mesmo depois que eu terminava a leitura. É simples. São textos escritos por mim. Eu consigo teletransportar para onde eu quiser, desde que eu escreva sobre os lugares para onde desejo ir". "Então é por isso que ainda estamos nessa biblioteca enorme? Por que você criou esse lugar em sua mente e escreveu sobre esse ele?", outra pergunta que o Escritor já sabia provavelmente a resposta. "Sim. É diferente de quando eu leio um livro escrito por outra pessoa. Eu habito o universo criado por outra pessoa apenas enquanto eu estou lendo a história, assim como quem estiver ouvindo minha leitura. Quando eu paro de ler, tudo desaparece de repente. Venha, preciso mostrar algo para você", disse o jovem HOb com empolgação, puxando o Escritor pelo braço. Caminharam durante longos minutos subindo escadas, passando por estantes, pilhas de livros, o Escritor admirado com todo aquele lugar imaginado pelo garoto que ia mostrando detalhadamente cada setor que inexplicavelmente existia naquela biblioteca. Passaram por um andar inteiro dedicado a livros que nunca foram publicados por diversos motivos, um outro andar era dedicado a obras que os próprios autores se recusaram a publicar por considerarem ruins demais, com textos supostamente mal escritos ou histórias com enredos mal desenvolvidos. Depois de mais alguns lances de escadas, chegaram ao local que o jovem HOb queria mostrar ao Escritor Astronauta. Era um andar dedicado a livros que ainda não foram publicados porque ainda estavam sendo escritos pelos seus autores em tempo real. "Eu chamo esse lugar de Setor dos Livros ainda Inéditos", disse o garoto, eufórico, "Pegue qualquer livro e você verá as palavras ainda nascendo pelas páginas, enquanto o autor vai criando a história". Completamente espantado, o Escritor considerou aquilo surreal demais. Passou os olhos pelos livros na estante, e descobriu nomes de autores mundialmente famosos compondo a paisagem impressionante de obras inéditas naquelas prateleiras. Parou, atônito, diante do tomo grosso de um livro na estante, estampando o nome do romancista George R. R. Martin. Puxou a enorme obra e leu na capa o título em inglês "The Winds of Winter". "Isso não pode ser verdade", pensou o Escritor, soltando uma risada nervosa quando começou a folhear algumas páginas, lendo diversos trechos da obra. Passou mais algumas páginas ansioso e percebeu que perto da metade do livro em diante, as páginas estavam em branco. Na estante ainda havia um outro tomo que trazia o nome de George R. R. Martin. Estava prestes a tirá-lo da prateleira quando a voz do garoto gritando alguns metros adiante chamou sua atenção. "Aqui! Parece que é esse aqui! Venha ver", dizia o jovem ao tirar um livro da estante de obras ainda inéditas. O Escritor colocou de volta o grosso livro que havia encontrado e, movido pela curiosidade, foi encontrar o jovem HOb para saber o que ele realmente queria lhe mostrar. Aproximou do garoto que folheava um outro livro com curiosidade intensa. "Sim, eu encontrei! É ele mesmo", disse o jovem. "O que você encontrou?", perguntou o Escritor, enquanto se aproximava. O garoto HOb ergueu o livro diante de seus olhos como um troféu conquistado por um grande feito heróico, "Seu livro. Encontrei o livro que você ainda está escrevendo!".

Escrito por Ulisses Góes

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