terça-feira, 13 de novembro de 2012

O Escrinauta ~ Hortelã

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Após aquele bloqueio criativo desenvolvido numa lógica temporal difícil de se compreendida, onde os dias podiam ser condensados em frações de microssegundos, um silêncio profundo se firmou por todo o ambiente do apartamento do Escritor Astronauta. Ele sentia um gosto amargo de tempo perdido quando se recordava da experiência vivida há poucos momentos atrás, como se tivesse vivido uma vida durante um simples piscar de olhos. Levantou-se vagarosamente, e por segurança, colocou seu capacete. Depois das duas tentativas perigosas de Flávio, queria realmente se certificar de que não seria pego novamente desprotegido vagando em suas ideias e pensamentos. Precisava voltar a escrever o quanto antes, já que sabia exatamente a razão de todos aqueles ataques de seu personagem rebelde, que estava disposto a tomar qualquer atitude para impedir que pudesse prosseguir com a história da maneira como queria. O questionamento maior do Escritor era como fazer para seu personagem esquecer tudo o que ele descobriu e voltar a seguir o curso de própria vida dentro da história. "Como eu faço para Flávio esquecer que ele é fruto de minha mente de escritor?", perguntava-se intrigado e ciente de que, enquanto Flávio soubesse que era personagem de seu livro, ele continuaria sua perseguição implacável e encontraria outras formas ardilosas de atrapalhar o desenvolvimento da trama. Pensou em reescrever a parte em que ele descobre sua existência enquanto escritor e seu criador, mas acabou concluindo que de nada adiantaria pois se Flávio foi capaz de se conectar com seus pensamentos uma vez, muito provavelmente ele acabaria fazendo isso outras vezes no desenvolvimento da narrativa, tornando-se uma constante dor de cabeça para terminar o livro. Na verdade, a conexão criada entre ele e Flávio era o elo que sempre denunciaria todas as suas ideias em relação ao livro e à história. Pegou a estranha caneta utilizada para esconder trechos de seus textos e guardou novamente no pequeno estojo excêntrico, segurando-o enquanto olhava para as imagens translúcidas flutuando sempre pelo seu apartamento, observando os trechos já escritos, além de alguns rascunhos de ideias para serem utilizadas posteriormente. Entre as ideias escritas, leu um nome: "Thales". Sentiu uma pequena dor pontiaguda em sua nuca e subitamente sua mente foi invadida por flashes rápidos de imagens viajando na velocidade de descargas elétricas de seus pensamentos soltos. Não conseguia visualizar com total precisão dada a dificuldade em prendê-las como lembranças por mais de meio segundo. Viu uma mão branca segurando algo que parecia ser uma espada, ou uma katana. Viu uma fumaça negra dançando rápida e sutil ao redor de um vulto com feições pálidas e olhos vermelhos como sangue com um olhar tão penetrante que o assustou. Balançou a cabeça, e as imagens em flashes dissiparam-se completamente, ao mesmo tempo em que pequenas borboletas azuis silenciosamente invadiram o interior de seu capacete, bloqueando totalmente sua visão. Sem fazer a menor ideia de como elas conseguiram entrar em seu traje, o Escritor assustado cambaleou, tropeçando em seus próprios passos e caindo para trás. Deitado no chão, sentiu um aroma fresco de flores do campo que exalava das borboletas invasoras de capacetes, e imediatamente deduziu que tudo aquilo poderia ser obra de sua amiga Caroline, a Feiticeira Lunar. Demorou alguns segundos para que as azuladas voadoras silenciosamente desaparecessem como surgiram, de uma maneira misteriosa, inexplicável. Uma claridade mansa cegou a visão do Escritor que, ainda deitado, enxergou no teto uma abóbada de onde pendiam trepadeiras ornadas de flores maravilhosas. "Mas onde eu vim parar?", indagou confuso, ao levantar-se e perceber que não estava mais em seu apartamento. Olhou ao redor com um expressão de completa estranheza. Tirou o capacete e sentiu fragrâncias de flores do campo por todo o ambiente, perfumes variados flutuando pelo ar carregados por luminosidades coloridas refratárias provenientes de todos os cantos daquele salão amplo. Havia plantas por toda parte, a maioria crescendo dentro de carcaças de monitores antigos de computadores. Nas paredes, algumas pinturas exóticas com imagens de deuses orientais, celtas e egípcios e naturezas exuberantes, espadas antigas e floretes compartilhavam espaço com panelas de cobre e variadas colheres de pau penduradas em ordem aleatória de tamanhos e cores. O Escritor caminhou em direção a uma prateleira com diversos frascos coloridos com óleos e essências de variadas plantas com nomes desconhecidos para ele. Ali próximo, uma estante de livros chamou a atenção do Escritor Astronauta pelos seus títulos misteriosos como "O Uso Secreto das Ervas", "Conhecimento sobre Solos", "Livro das Sombras", "Símbolos do Antigo Egito", "A História das Tradições Milenares". A maioria mostravam suas capas duras envelhecidas pelo tempo e páginas amareladas e rasgadas nas bordas. Ali perto, em um sofá aconchegante cheio de almofadas de crochê, uma gata dormia preguiçosa, indiferente à sua presença inesperada. Passou por um pequeno e bem cuidado jardim circular que ficava exatamente logo abaixo da abóbada no teto. Entre as plantas, uma estátua de uma figura feminina quase completamente coberta de folhas, musgo verde e flores. Aos seus pés, escondida pelas ramagens, havia uma pedra onde podia se ler esculpida o nome "Gaia". O Escritor, cativado pelo sossego daquele ambiente impregnado de aromas floridos, começou a deduzir que aquele lugar era o lar de sua amiga Caroline. Silencioso e sem alarde, flutuou em direção a um espaço que parecia ser uma cozinha, mas que se assemelhava a uma pequena estufa, onde a natureza crescia por todos os cantos despreocupada. Um bule branco com água parecia esquecido na labareda azul de um fogão muito antigo. No centro, uma imensa mesa de madeira com pés de ferro, coberta por uma toalha estampada com flores e borboletas, era ocupada por uma bagunça mirabolante de pequenas sacolas de veludo, pedras preciosas, diversas velas aromáticas acesas, papéis com desenhos de runas e talismãs, mais alguns livros antigos abertos, um prato com alguns cupcakes e um notebook ligado, com uma página de uma rede social aberta. Quando aproximou-se a tempo de conseguir ver o perfil online da Feiticeira Lunar, sentiu a fragrância de flores do campos se acentuar pelo ar e a voz conhecida e amistosa de sua amiga Caroline atrás de si o fez estremecer num susto discreto.
"Oi, amigo! Que bom que eu consegui trazer você até minha humilde moradia", disse a Feiticeira Lunar animada, abraçando-o em seguida. "Oi, Carol. Imagino que você possa me explicar como eu vim parar aqui em sua casa", questionou o Escritor, curioso. "Sim, eu posso. Foi por causa de minha caneteira". "Caneteira? Como assim caneteira?", perguntou o amigo, confuso. "Essa que está em sua mão. Ela é minha caneteira, e é utilizada para guardar segredos e esconder textos que tenham uma natureza confidencial, secreta. Dependendo dos motivos, a pessoa que esconde os textos os torna ocultos até para quem os escreveu, fazendo a pessoa esquecê-los completamente. Eu estava mexendo em algumas caixas hoje e senti falta dela. No mesmo instante em que dei por falta dela, a caneteira se teletransportou de volta para cá e trouxe você junto.", explicou Carol, enquanto pegava o pequeno estojo da mão do Escritor, que tentou explicar o motivo daquela caneta estar em seu poder. "Essa caneteira foi usada pelo personagem de meu livro para esconder um trecho importante da história". A Feiticeira Lunar olhou um tanto supresa para o amigo, que passou alguns minutos explicando para ela tudo o que havia acontecido entre ele e o personagem Flávio, desde o primeiro encontro ameaçador entre eles em seu apartamento, passando pela luta massacrante no deserto, até a descoberta de seu texto escondido naquela caneta estranha. "Seu personagem descobriu sua origem e criou uma conexão com você? Então a situação é preocupante. Se ele descobriu o elo que os une, ele pode fazer qualquer coisa para impedir você de seguir adiante com seu livro, como, por exemplo, invadir minha casa e surrupiar minha caneteira, ou até de induzir você a escrever a história da maneira dele. Isso significa que ele se tornou uma entidade viva que pode acabar com todos os outros personagens, enfim, tornar seu livro uma catástrofe completa", disse Caroline, extremamente preocupada. "Eu não posso continuar escrevendo até encontrar uma maneira de anular totalmente esse elo que existe entre a gente". "Por que você simplesmente não elimina o personagem de sua história?", perguntou a Feiticeira Lunar, enquanto pegava o bule e derramava a água fervida em duas xícaras cheia de pequenas folhas de hortelã. "Eu não posso. Ele é importante para o desenvolvimento da história. Sem Flávio, tudo que criei fica sem sentido", respondeu o Escritor, soltando o suspiro de desânimo. Enquanto tomava o chá oferecido pela amiga Feiticeira Lunar, olhou para o teto da cozinha-estufa e descobriu uma coruja de um branco acinzentado com dispersos penachos pretos dormindo escondida em um canto, entre vasos suspensos de plantas exóticas. "Eu não sei como isso foi acontecer. Como Flávio conseguiu abrir essa conexão entre dois mundos? O universo dele sequer existe, é uma criação de minha mente!", questionou o Escritor, bebericando o chá. "Provavelmente você esteja enganado quanto ao mundo dele não existir.", ponderou Caroline. "Como assim enganado?", indagou o escriba, confuso. "Eu sempre imaginei os escritores como pontes de ligação entre universos distintos, que existem em dimensões separadas, ou paralelas. Vocês tem o dom de visualizar estes mundos como fruto de suas imaginações frenéticas, e acabam criando histórias baseadas neles. Essa conexão possivelmente poderia ter ocorrido com qualquer outro personagem de sua história. Acabou acontecendo com Flávio", explicou a Feiticeira. "Se o que você diz realmente for verdade, isso significa que Henrique, Roney e Hemilly estão em perigo real por causa de Flávio, e eu inevitavelmente vou escrever a história da maneira como ele fará, e não como eu penso que seja.", afirmou o Escritor, que ficou aflito ao ver Caroline concordando com tudo o que ele havia dito. "Agora, pensando sobre essa incrível conexão entre os mundos, eu começo a imaginar que a resposta para o problema que você tem seja exatamente esse.", disse Caroline, mordendo um dos cupcakes de banana que estava no prato ao lado de seu notebook. O Escritor olhou para ela silencioso com uma estampada expressão interrogativa em seu rosto. "A sua única alternativa é abrir um buraco para um universo paralelo", a Feiticeira sorriu com a frase dita e prosseguiu com sua explicação, "Pense bem, o que aconteceu entre você e Flávio foi uma conexão entre mundos. Claro, mundos diferentes, pessoas diferentes. Então, se isso foi possível acontecer, você pode fazer acontecer dentro da sua própria história. Você só precisa criar uma possibilidade de ser aberto um portal dimensional para um outro universo paralelo ao universo dos personagens de seu livro." Os olhos do Escritor imediatamente se iluminaram, pois não demorou muito e ele já desenvolvia, a partir da ideia inicial de Caroline, todo o desenrolar dos fatos subsequentes. Entretanto, Caroline impediu que a imaginação do Escritor se desenvolvesse e estalou os dedos bem diante de seus olhos, tirando toda a sua concentração das ideias que se formavam previamente em sua cabeça. "Não! Não faça isso agora. Não imagine nada. Esqueceu que Flávio fica sabendo de tudo o que vai acontecer na história no exato momento em que você imagina tudo em sua mente? Relaxe, respire fundo. Dessa vez você vai criar o elemento surpresa para seus personagens, aquilo que o leitor percebe na história como sendo o momento de suspense. Essa parte da narrativa vai ser um desafio para você." O escriba olhou sorrindo para sua amiga, agradecendo pela fabulosa ideia. Continuaram a tomar o chá, enquanto o Escritor Astronauta deixava sua mente ser invadida por centenas de borboletas azuis voando num céu branco.

Escrito por Ulisses Góes



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