segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Foi uma noites dessas em que você não espera por surpresas que ele apareceu. Bateu em minha porta como sempre fizera em outros tempos. eram pancadas firmes, fortes. A princípio aquelas batidas me assustaram, afinal, àquela hora da noite eu não esperava por ninguém e não fazia a menor idéia de quem poderia ser. Nem sequer imaginava que pudesse ser aquela pessoa que, tempos atrás, havia desaparecido por completo de minha vida após discutir desafiadoramente comigo e bater a porta com uma raiva desconcertante. Entretanto, ao abrir a porta, fui pego de surpresa por sua presença diante de mim, com um sorriso de contentamento ao rever um amigo de tanto tempo. Estava diferente, a fisionomia serena, um rosto mais amigável, feições de quem estava longe de problemas. Cumprimentou-me, festivo, perguntando como andava minha vida. Ainda surpreso, retribuí seu gesto de cumprimento, e buscando conter meu completo espanto, respondi prontamente. "Comigo anda tudo bem".
Entramos e iniciamos uma conversa animada e amistosa, eu sempre mostrando certa surpresa, e ele sorrindo, feliz pelo reencontro depois de tanto tempo de afastamento. Claro que o período de exílio a que nossa amizade tinha sido submetida foi mais uma atitude consciente e uma decisão unilateral da parte dele, mas naquele momento nada disso tinha muita importância. O reencontro e a receptividade positiva de ambos com relação ao momento era o mais importante naquela noite. Sentamos e iniciamos um diálogo alegórico de lembranças rápidas e nostálgicas. Ele sorria, e olhava para mim sempre afirmando que eu nunca mudava, que continuava sempre o mesmo, a mesma fisionomia, o mesmo rosto, os mesmos trejeitos. De minha parte, já era o contrário. Olhava para ele e não visualizava mais aquela pessoa de antes. Cabelos curtíssimos, mochila nas costas, gestos e palavras de alguém que iniciava sua jornada universitária, buscando expor suas descobertas e suas opiniões sobre todo o conhecimento que começava a adquirir. Ele em nada lembrava aquele jovem cabeludo roqueiro cuja rebeldia se transmutava nas roupas escuras que costumava vestir sempre e nas músicas que ouvia, como nos acordes transgressores e distorcidos de bandas como Vintersorg. Para mim, era como estar observando um céu azul e claro logo após um tufão, um tornado, uma tempestade negra.
Ele sorria sempre, mas não demorou muito, e durante o desenvolvimento de nosso franco diálogo percebi que seus olhos traziam o brilho inquietante das dúvidas existenciais. Ele sorria, mas à medida em que ia explicando o motivo de seu reaparecimento, seu sorriso ficava mais contido, mais sutil, até que em algum momento da conversa sumiu, dando lugar a um leve semblante sereno de uma pessoa que buscava respostas. Algo o incomodava por dentro, e esse incômodo tornou-se visível nos gestos mais comedidos. Mesmo após me contar sobre sua vida e sobre suas conquistas durante o tempo em que havia sumido, eu podia perceber que havia algo mais naquele reencontro do que apenas rever uma amizade de outra época. Havia algo mais, como uma revelação a ser feita. E essa revelação veio calma, mansa, entre frases pausadas, pensadas, sem alarde. "Eu desapareci, mas depois de algum tempo surgiu em mim essa necessidade de buscar novamente amizades antigas", dizia ele. "Eu desapareci pois eu queria renegar todo um passado que eu vivi. Eu queria esquecer um passado de frustrações e decepções. Entretanto, recentemente eu senti um vazio dentro de mim, como se eu não conseguisse mais me reconhecer como pessoa, como eu mesmo. Reneguei meu passado, pessoas importantes e isso custou muito caro para mim". À medida que meu amigo falava, eu começava a entender aquele semblante em seu rosto que misturava numa mesma face expressões de alegria, satisfação, angústia e certa tristeza. "Eu me lembro exatamente do dia em que brigamos, e até hoje nem entendo direito porque aquela discussão existiu. Você gritou comigo, se irritou e saiu batendo a porta com uma fúria extrema. Depois daquele dia, você desapareceu e nunca mais te vi novamente", expliquei, lembrando o fatídico dia em que nossa amizade havia sofrido um duro golpe. Ele ouvia tudo atentamente, com um olhar parado, como que tentando relembrar tudo, e um sorriso de decepção. "Mas agora eu estou buscando resgatar tudo o que eu tentei renegar. E eu percebi como aquela atitude minha custou caro para mim agora. E eu percebi que de todo aquele passado, todas as amizades que eu busquei afastar de mim durante todo esse tempo, você é a única coisa real que sobrou hoje". Nesse momento eu estremeci por dentro. Ele estava mostrando para mim sem nuances e sem rodeios o nível de importância que nossa amizade passava a ter naquele exato momento de nossas vidas. "Você é o único elo que me liga a todo um passado que reneguei tanto que hoje não consigo lembrar e nem visualizar com exatidão. É como se toda uma época de minha vida tivesse se tranformado em uma sequência desconexas e vagas de imagens, como um sonho que mal consigo me lembrar. E hoje, você é o único amigo que tenho que pode me fazer lembrar de tudo que tentei e consegui esquecer. Quero trazer de volta meu passado, para que eu possa entender quem eu sou hoje a partir do que eu fui".
Enquanto ele me explicava num tom meio exaltado mas sempre contido, eu ouvia atento cada palavra sua, tentando absorver aquela situação da forma como ela merecia e deveria ser absorvida. Foi quando eu realmente me dei conta da importância verdadeira que minha amizade havia se tornado para ele. Ele me olhava com olhos brilhando em questionamentos, dúvidas pulsando firmes mostrando a necessidade quase urgente de respostas e esclarecimentos. Não hesitei em dizer a ele que, no que ele precisasse de mim, eu estaria sempre ali, presente, para ajudar a resgatar seu passado, do qual eu fiz parte de forma inquestionável. E então, naquele momento, eu me transmutei em um Viajante do Tempo, preparado para empreender uma jornada de retorno a um passado não muito remoto e trabalhar num processo arqueológico-temporal de resgate de momentos, situações, palavras, emoções e experiências vivenciadas pelo meu amigo. Eu olhei para ele e sorri. Estava preparado para o salto de volta ao passado.

...continua...
 
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